O nome de Jack London evoca, para os leitores brasileiros, romances e contos vigorosos sobre aventuras passadas em lugares selvagens, tais como as famosas incursões do escritor pelas minas de ouro do Klondike, no Alasca. Pouco se conhece, entretanto, de sua faceta de jornalista, sempre referida na biografia do autor, mas cujas obras são pouco divulgadas no Brasil.
A publicação da reportagem O povo do abismo – Fome e miséria no coração do império britânico: uma reportagem do início do século 20 (pela Coleção Clássicos do Pensamento Radical, da Editora Fundação Perseu Abramo) vem, portanto, preencher uma grande lacuna no conhecimento da obra deste autor americano. Mais do que isto: ela nos permite o contato com um dos mais dolorosos relatos sobre a exploração humana, através do mergulho na região mais miserável de Londres, o East End, na qual iam parar todos os homens, mulheres e crianças considerados “ineficientes” pelo sistema industrial – lá “onde mora a destruição na qual definham miseravelmente”.
Para mostrar, por dentro, a realidade dos desgraçados londrinos, que não tinham nem onde encostar a cabeça, “porque havia uma lei que proibia os sem-teto de dormir à noite” em áreas públicas, London escolhe o caminho mais difícil e arriscado, mas o único possível: passando-se por um marinheiro americano desempregado, mergulha ele mesmo na desolada região, vivenciando na própria pele as condições de vida dos seus habitantes.
Não é possível exprimir o horror revelado no livro nas escassas linhas desta resenha. Mas, a leitura da obra, sem dúvida uma das mais contundentes reportagens já realizadas – escrita em 1902 e publicada em 1903 -, permite-nos colocá-la ao lado de outro monumento, do mesmo período: Os sertões. O clássico de Euclides da Cunha (também de 1902) é outra das primeiras obras de jornalismo literário (precursoras do new journalism americano, dos anos 50 e 60) que lançam um olhar agudo sobre segmentos desamparados da sociedade. No caso de Euclides, os sertanejos do interior da Bahia, no final do século 19; no caso de London, as massas proletárias do submundo social dos excluídos e dos miseráveis de Londres.
Engajamento
Não se trata de uma visão descomprometida ou imparcial, como propõem os manuais contemporâneos de jornalismo, mas de um relato engajado de um militante da causa socialista que viveu na própria pele a fome e a falta de perspectivas. Talvez por isso tenha ele tido, mais do que qualquer outro de sua geração, a capacidade de representar as condições abjetas às quais estava submetido o proletariado. Como mostra o seguinte trecho, a respeito de alguns vagabundos com os quais vagou, à noite, pelas ruas:
Da calçada imunda recolhiam e comiam pedaços de laranja, cascas de maçã e restos de cachos de uva. Quebravam com os dentes caroços de ameixa em busca da semente. Catavam migalhas de pão do tamanho de ervilhas, miolos de maçã tão sujos e escuros que ninguém dizia que eram miolos de maçã, e os dois homens punham essas coisas na boca, mastigavam e engoliam; isso entre 6 e 7 da noite de 20 de agosto, do Ano do Nosso Senhor de 1902, no coração do maior, mais rico e mais poderoso império que o mundo jamais viu.
Na longa introdução que faz sobre o autor, Maria Silva Betti, professora de literatura norte-americana da Universidade de São Paulo, afirma (mas não esclarece a afirmação) que “o livro teve uma recepção apenas parcialmente favorável por parte da crítica, que apontou como defeito principal a falta de ‘dignidade literária’ no tratamento do assunto escolhido”. Mas o próprio London afirmaria: “Nenhum outro livro meu hauriu tanto meu jovem coração e minhas lágrimas como esse estudo da degradação econômica dos pobres”.
A percepção lúcida de que “o Abismo londrino é um imenso matadouro”, no qual “no ano passado, e ontem, e hoje, e neste exato momento, 450 mil criaturas morrem miseravelmente no fundo desse inferno social chamado ‘Londres'”, é expressa no livro com registros de depoimentos, relatórios, cópias de processos judiciais, dados e estatísticas retirados de instituições da época.
Com base, por exemplo, nas estatísticas de que 1.292.737 pessoas ganhavam 21 xelins ou menos por semana, e de uma relação de preços que incluem produtos e serviços básicos, como aluguel, pão, carne, carvão e açúcar, London mostra como é diminuta a margem para desperdício, por exemplo, numa família de sete pessoas.
Toda a quantia de US$ 5,25 é gasta em comida e aluguel. Não sobra nenhum trocado. Se o homem comprar um copo de cerveja, a família terá de comer menos e, quanto menos comer, mais comprometerá sua eficiência física. Os membros dessa família não podem andar de ônibus ou de bonde, não podem escrever cartas, passear, ir ao teatro divertir-se com um vaudeville barato, participar de atividades sociais ou clubes beneficentes, nem podem comprar guloseimas, tabaco, livros ou jornais.
A obra nos permite refletir sobre algumas questões. Por exemplo: que pontos de contato existem entre o tenebroso mundo retratado por London e o nosso próprio abismo social? Há espaço e interesse, em nossos jornais e revistas, para um longo relato mostrando como, de fato, vivem os que estão à margem da nossa sociedade globalizada e neoliberal? Ou, ainda: os jornalistas, hoje, estão suficientemente capacitados para mostrar não meros fatos e estatísticas “objetivos”, mas a experiência humana dos homens e mulheres de carne e osso por eles retratados? E estariam eles motivados o suficiente para ousar viver na pele o que sofrem os excluídos?
Não é fácil responder. Havia, até a segunda metade do século 20, um elemento que parece estar ausente do nosso mundo pragmático, pós-1989: a utopia, a crença de que é possível alcançar a igualdade social e não apenas tirar o máximo possível de vantagens da sociedade na qual vivemos. London era um militante convicto da causa socialista e, por ela, era capaz de sacrifícios, como os que nos mostra em seu espantoso relato.