SONATA ARBÓREA NÚMERO 5
Por Ordep Serra
Anunciaram-se, algumas, pela graça de uma dádiva. De outras tomei
conhecimento no bosque dos signos, bem antes de um encontro direto, no mundo natural.
Inúmeras habitam meus sonhos e só neles florescem.
O perfume da canela tocou-me bem antes que eu deparasse a planta de pele
sedutora. A mesma coisa se passou com o cravo. Os dois tomaram forma de mulher,
graças a um escritor amado.
Tal como cravo e canela, foi também nos pratos que descobri outra criatura viçosa.
Seu sinal de beleza me deslumbrou, brotando luz, graças à lírica.
Demorou um pouco esta revelação. No princípio, era mesmo um sinal que flutuava.
Em minha experiência de menino do Recôncavo, só as folhas discretas, submersas em
deliciosa escuridão, sugeriam a planta nunca vista nos quintais, nas hortas, no mato de
meu conhecimento. O ser dos prados que eu lhe presumia era puro broto de dedução.
Confesso que achava inatingível sua promessa de sabor. Me intrigava também seu nome:
tal e qual os papagaios (que a gente também chamava assim), eram verdes as folhas de
Para complicar, ainda havia “o verde louro desta flâmula”, na selva barroca do hino
nacional. Para meu juízo de criança, tratava-se mesmo de um papagaio: o hino lhe pede
que diga coisas bonitas. Estranho jogo de signos enleava assim as palavras e as coisas,
dourando as folhas da planta longínqua.
Explico: a referência básica que eu tinha para a compreensão do termo “louro”
eram cabelos de pouca gente. Na minha negra cidade natal, pessoas com esta dourada
característica compunham exígua minoria. Eram chamadas de alemãs. Em Cachoeira e
Salvador, conheci alemães paulistas, espanhóis e até mesmo baianos — além de alguns
germânicos de verdade, muito simpáticos. Mas na Bahia da minha infância até os
oriundos da Alemanha tinham de passar por um crivo semântico: se tivessem cabelos
negros, eram apenas gringos.
Aos poucos, isso mudou. O cinema consagrou o feitiço das louras, ao tempo em
que arrasava os alemães: este nome gentílico passou a sinônimo de “inimigo”, aliás
sempre derrotado pelos artistas de Hollywood. Complicação: uns e outros podiam ter
cabelos de milho.
E havia os anjos dourando a igreja.
Na escola, vi desenhos que festejavam um ilustre caolho enfeitando-lhe a cabeça
com as folhas da feijoada. Achei graça.
Antes ainda de me aparecer em pessoa (digo, em planta completa), o loureiro se
fez anunciar por uma rica folhagem de versos. Brotava de um mito. Tinha nome de moça
fugitiva. Por arte de um amigo de metamorfoses cujas poemas se multiplicaram, variando
ao sabor de muitas plumas, a fuga de Dafne fez-se ubíqua: Ovídio teve milhares de
repetidores e inúmeros ventríloquos. Alguns deles falavam com os dedos.
Há muitos exemplos, fico com o mais próximo. Em azulejos do único palácio que
frequento — a reitoria de minha universidade —, pode-se contemplar a bela ninfa
perseguida pelo deus e já quase virando árvore. Diante da cena, saboreio um delírio
infantil que inverte o drama de jeito baiano e pós-moderno: imagino uma loura
entusiasmada perseguindo o glorioso Apolo. O deus se assusta, foge e se transforma em
papagaio. Lembro-me, então, de que louras em transe são um grande perigo,
principalmente na Bahia. Interrompo meu delírio antes que o Soberano de Delfos seja
depenado. Mudo logo de rumo, tocado por outra recordação de tempos inalcançáveis.
Na véspera do parto, Mágia Pola sonhou que dava à luz um loureiro. No dia feliz, a
bela matrona interrompeu a caminhada nos campos mantuanos do Míncio e se plantou
numa vala oportuna, onde pariu. Nessa cova, pouco depois, nasceu um choupo que
rapidamente cresceu, a ponto de superar os maiores da localidade.
Donatus dixit.
Assisto com reverência a ciranda de mulheres grávidas ao redor da árvore de
Virgílio. Bem sei que há séculos isto não se faz, mas sempre revejo a cena. Já pensei em
escrever às autoridades mantuanas sugerindo o replantio do choupo sagrado. Seria um
estímulo, a Itália precisa de bebês.
Sim, meus amigos, é forte a miragem: demoro a crer que nunca estive em terra
etrusca. No eixo da antiga dança, interminável para o desejo de meus olhos, reconheço
logo a criatura que os latinos chamavam de populus, embora não recorde onde nos
conhecemos: talvez em São Paulo, talvez na França. Estranho o seu apelido português.
Creio que o nome de álamo lhe cai melhor. Dedico a Virgílio e Donato os álamos
tremulantes, um arbóreo rebanho americano que vi dançar no cinema.
O poeta mantuano me apresentou em versos outra árvore, que por sua causa
tenho por mal assombrada. Admito que são simpáticos os olmos, muita gente os ama,
parecem até carinhosos, mas que fazer? Todos me lembram o que Virgílio plantou em
sinistro espaço, no meio de horrores, com sonhos enganosos escondidos entre suas
folhas. Confiram no Canto VI da Eneida.
Torno ao loureiro. Outro poeta lhe transmitiu um encanto novo, associando sua
folhagem mística com a beleza da namorada inalcançável. Por causa dele, a planta de
olhos verdes ainda nos deixa tontos. Laura e il lauro, depois da Canzone VI, nunca mais
separo. Mas confesso: fiquei estarrecido quando soube que a amada do poeta, Laura de
Noves, teve onze filhos de um homem chamado Sade. Declaro meu assombro. As Lauras
que conheço (por acaso, todas morenas) são muito mais comedidas. As louras talvez
sofram do pleonasmo.
Pobre Petrarca.
Resolvi dedicar esta quinta sonata a árvores exóticas, mas a que agora me
aparece, embora eu nunca a tenha visto, mostra-se estranhamente familiar. Confesso que
até hoje só mesmo em fotografias vi o copado ébano. Mas já o encontrei em móveis e
estátuas que o tornaram querido. De resto, ele me lembra a magnífica gente negra de
minha terra. Além disso, eu o ouço muito. Admiro sua voz de óboe, de clarineta, de flauta.
Sinto o deleite de seus dentes negros no piano.
Rezo também ao sândalo. Segundo li em algum lugar (ou talvez imaginei) seu
perfume protege contra a inveja. Me alegra saber que o governo indiano hoje dispensa
proteção a essa árvore sagrada. Sou seu devoto. Na minha rápida estadia na Índia, não
pude ver o santo vegetal. Consola-me um pouco imaginá-lo envolto pela densa floresta
que vislumbrei de passagem. Espero que lá perdure por séculos e séculos, abençoando
pássaros e tigres.
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